Um olho no peixe, um olho no gato

Marcelo Veras

O sucesso terapêutico muitas vezes cega a equipe. Já os obstáculos nos fazem lembrar que o sintoma perdura, e que nenhuma cura significa sua abolição.

Fui convidado para discutir um caso clínico difícil com a equipe do Cândido Ferreira, em Campinas. O Cândido sempre foi para mim uma referência no processo de reinserção social de pacientes, inclusive aqueles cronificados por anos de internação psiquiátrica. Gosto do Cândido, para além da experiência e disposição de seus técnicos, é possível ver em Campinas o que pode uma rede de Saúde Mental quando há real vontade política de inserção e atendimento individual por parte de uma administração pública. Obviamente, isso não quer dizer que tudo seja perfeito. Encontrei uma equipe amadurecida e acostumada com casos difíceis, por isso imaginei que o caso que me apresentariam seria um real desafio. Não vou trazer os detalhes do caso, mas sim o que o ele, por vias vicinais, pode me ensinar.

Um paciente com anos de hospitalização psiquiátrica, já com seus cinquenta e poucos anos, tornou-se um problema na residência terapêutica onde passou a morar, isso devido aos ataques imprevisíveis de violência contra tudo e todos. Do nada, esse pequeno senhor de poucas palavras era capaz de quebrar as coisas à sua volta com uma força impressionante. Depois, ele se retraía e com um pequeno sorriso desconcertante era até capaz de pedir desculpa e se retratar. Quase todos os que trabalhavam diretamente com ele já tinham sido alvo das agressões físicas que surgiam do nada. Muitas vezes ele estava tranquilo e acompanhando calmamente um técnico da equipe quando de repente desferia um golpe violento. Tampouco a contenção química funcionava, mesmo com doses altas de medicação, os ataques abruptos ocorriam.

Inicialmente o caso ensina que a clínica da reinserção sempre encontra obstáculos que logo viram pretexto para o retorno da lógica da exclusão e hospitalização perpétua. Pior nesse caso. Jamais um paciente como este permaneceria em  uma residência terapêutica se não houvesse a lei 10.216 e a vontade de toda uma equipe. Não sou contra a hospitalização psiquiátrica pontual quando esta se faz necessária, mas nesse caso dizer que seu retorno ao hospital é necessário parece ser o caminho mais fácil e que deixa todos em certa zona de conforto. Não para essa equipe. A questão está justamente na definição do que é uma necessidade de hospitalização. A clínica psicanalítica é sempre um exercício de leitura e de escuta que nos auxilia a pesar o que é necessário e o que é contingente. Quando estamos diante de um paciente como este, que faz pouquíssimo uso da fala, torna-se ainda mais importante estender essa escuta aos que se ocupam dele. Eis um bom momento para uma supervisão institucional.

A supervisão institucional oferece a possibilidade de passar da experiência bruta dos afetos que atravessam a equipe a uma tentativa de elaboração de saber. No caso dessa supervisão, embora a equipe se apresentasse como perdida, o mais curioso foi constatar que um savoir faire estava em pleno desenvolvimento, sem que eles mesmos se dessem conta. Em um momento da reunião um dos membros da equipe afirma que com esse paciente era preciso permanentemente estar meio alerta e não desviar os olhos dele, que bastava virar as costas e ele podia atacar, “Com ele tem que ser um olho no peixe e um olho no gato”.

Mas não é essa precisamente a atitude que sempre devemos ter na clínica, principalmente quando focamos na reinserção social?

Muitas vezes achamos que o fato de poder dar a estes pacientes, antes hospitalizados em condições muitas vezes sórdidas, uma nova qualidade de vida, casa nova, comida e roupa passada, liberdade de ir e vir, podemos tirar o olho daquilo que faz sintoma. É como se achássemos que o sintoma se dissolvesse e se confundisse na paisagem dos laços e ideais sociais. Ora, o sintoma é sempre aquilo que resiste, aquilo que não é dócil, que incomoda em qualquer ambiente, quer seja no pior ambiente institucional, quer seja na melhor das comunidades terapêuticas.

Isso nos leva também a uma reflexão mais ampla sobre os efeitos de gozo do objeto olhar. Não deixa de ser curioso o, apenas em aparência, paradoxo desse objeto na clínica da loucura. Por um lado, pensando no hospital psiquiátrico de modelo asilar, criticamos o olhar absoluto, tal como o Panopticum de Bentham, que fez dos asilos verdadeiros caixas de observação. Por outro, reconhecemos que a clínica tem sempre que manter mesmo um olho no sintoma. Nesse caso específico, a equipe pode distinguir um ponto importante com relação ao olhar: quando o olhar sobre o paciente desaparece é aí que o paciente atinge pelas costas o interlocutor. Ao seu modo, o que a equipe pode perceber é que, para ele, a relação com outro passa por ser olhado pela equipe, e isso não é no sentido figurado. Quando o olhar do interlocutor desaparece, ele é reduzido a um kakon que deve ser abatido, ele se torna um objeto de destruição assim como as diversas televisões e mesas que ele destruiu na residência terapêutica.

Saio do bom encontro com a equipe do Cândido reafirmando algumas constatações:

  • A reinserção social não pode cegar o olhar clínico. Somos militantes da causa de cada sujeito, um a um, no momento em que não pensamos que a reinserção é feita sem o sintoma, sem que ele continue sendo o regime de gozo que preside os laços sociais. Não adianta apenas dar uma casa, um jardim, uma vizinhança ou uma praça se não levarmos em conta o valor de gozo com que cada um vai viver essa experiência, talvez, de liberdade. Esse gozo nem sempre é contábil, ao contrário, ele é muitas vezes um resto inservível, pois interessa apenas ao sujeito.
  • Quando pensamos o objeto olhar na instituição, não basta equipará-lo ao panopticum bhentaniano. Falar da presença desse olhar não é um mero fato sociológico, o que importa é perceber o valor de gozo, muitas vezes obsceno, que marca os corpos na instituição. Estar submetido a um olhar é sempre uma experiência de gozo que, singularmente, afeta à todos. Equipe, familiares, pacientes, todos reagem ao gozo estranho provocado pelo Olhar absoluto.
  • O sucesso terapêutico muitas vezes cega a equipe. Já os obstáculos nos fazem lembrar que o sintoma perdura, e que nenhuma cura significa sua abolição. Por mais que tenhamos sido bem sucedidos, por mais que o sintoma pareça um gatinho indefeso, é sempre bom não descuidar do peixe.

 

Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise

Data de publicação: 17/03/2016