Um convite à singularidade: Frida e seus olhares.

Marcia Henrique do Nascimento

Impressões da exposição Frida Kahlo – suas fotos/Olhares sobre o México., no Museu da Imagem e do Som – MIS e Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo.

Há algo que transcende no olhar emoldurado pelos grossos arcos negros: eles não aceitam a obviedade da condescendência ou da piedade que outros olhares poderiam lhe ofertar. Reside ali um desejo que nos leva outro patamar, que nos guia por uma responsabilidade propulsora, contrapondo-se à vitimização.

Neste sentido, Frida Kahlo nos desafia pelo estranhamento diante do que se revela. Uma mulher que abraçou sua singularidade e todos os paradoxos que daí derivaram: puramente, a dor e a delícia de ser o que é, reverberando na construção de uma nova feminilidade, na qual o protagonismo e o querer também são palavras femininas.

Aos contemporâneos escandalizava: dizia-se que ria alto, que bebia, que discutia política, que gostava de comer pimentas. Aí, uma incorreção: ela era a própria pimenta. Como disse Dorothee Rüdiger no texto “Frida e o olhar feminino”, ela causava. “Eu sou pau pra toda obra, Deus dá asas à minha cobra”, já diziam Rita Lee e Zélia Duncan.

Ainda hoje, resiste uma pretensão quase obsessiva em manter viva a mulher bela, recatada e do lar. Como seria sustentar a singularidade do corpo recortado, envolto em vestimentas étnicas que evocavam a paixão pelo México e seus simbolismos?

Décadas após o presumido suicídio, alçada ao status de diva pop, Frida multiplicou-se e estampa altiva desde camisetas a almofadas. Mas isto não a fez tornar-se óbvia, um pretenso objeto que infinitamente consumido esvazia-se de sentido, banalizando-se. Contrariamente, seu sentido foi amplificado e cabe à contemporaneidade das lutas pelo emponderamento, não apenas feminino, mas antes de tudo, humano.

Sim, pois fala ao sujeito e não ao gênero. As modas requerem cuidado, em seus terrenos áridos nos quais a reflexão geralmente é dispensada. Mas Frida fala aos angustiados, aos que não temem seu próprio reflexo, portanto não estendê-la a todos seria uma contradição ao significados que comporta.

Ecos de Frida e de tantas outras e outros, uma redenção irresistível à dívida simbólica: sabemos que alguém veio antes de nós, construiu pontes, provocou reflexões e necessárias mudanças de rota. Um convite ao sujeito.

Muito antes do advento da selfie, foram necessárias a exposição do corpo mutilado, das cicatrizes, das engenhocas que o suportavam. Sim, porque não há sujeito sem cicatriz, não há sujeito sem falta. A angústia tem cadeira cativa neste espetáculo. Mas o desejo também pode ter e é sobre isto que nos fala Frida.

As mulheres podem beber, comer pimentas, rir alto. Podem ter relações não tão idílicas com seus maridos, amantes, namoradas. Podem ser femininas entre uma coisa e outra. Podem ser paradoxais e continuarem sendo elas mesmas. Homens podem chorar e sensibilizarem-se. Gonzaguinha foi profético e Fagner eternizou: “Um homem também chora, menina morena, também deseja colo, palavras amenas”. O que há é a inclusão e não a segregação, resultando num beijo apaixonado na senhora diferença.

Estas sensações são quase palpáveis nas mostras Frida Kahlo – suas fotos e Frida Kahlo - suas fotos/ Olhares sobre o México. O esmero do curador Pablo Ortiz Monasterio nos leva a seis espaços temáticos, nos quais amigos, amores e familiares povoam um universo ao mesmo tempo tão peculiar e tão factível, no qual arte, política e paixão convivem no mesmo espaço.

As limitações físicas não são evidenciadas, mas sim tratadas como elemento para a compreensão e construção da personagem principal. Seria fácil ceder ao óbvio, mas afinal de contas um desejo realizado não é desejo. Estão ali a Frida cotidiana e sua arte, poderosa nos gestos, aquela a nos oferecer um pequeno domínio de suas costas levemente desnudas, seus adereços magníficos.

Circundada por poderosos coadjuvantes – retratados e fotógrafos – que nos ofertam uma irresistível singularidade, o que ali se desenha é uma estranha sensação de intimidade quando nos deparamos com todos aqueles olhares eternizados pela paixão e pela dor. Eternizados, enfim, pela humanidade significada em si mesmos.

Ao final, sua efígie nos oferta enigmas, transcrições de frases que se tornam colossais e revestidas de sentido ao visitante que, como Frida coloca, dispensa os pés e adota asas: “Por isso a morte é tão magnífica. Porque não existe, porque só morre aquele que não viveu. ” O que fica gravado no corpo após esta breve trajetória é um convite irresistível: sucumbir irremediavelmente ao desejo de ser o que se é.

Marcia Henrique do Nascimento é psicóloga clínica.

Data de publicação: 24/11/2016