Carta de um errante navegante: TERRADOIS, quem jamais te esqueceria?

Gisele Vitória

Do mar, se diz Terra à vista. Terra para o pé, firmeza. Terra para a mão, carícia. Outros astros lhe são guia. Terra. Terra. Por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria?

TerraDois também é Terra. TerraDois é Caetano. O Veloso e o Imbo. TerraDois é performance. É humor e coisa séria. É ópera. É poesia.

Terradois é genoma e uber. Sociedade compartilhada. É pós-modernidade.  Dá medo e dá coragem. Riso e choro. Singularidade e invenção. É um outro planeta. E é também o mesmo.

TerraDois é programa da TV Cultura. A segunda temporada terminou na última quarta-feira 13 à noite. Era só ligar lá, às 22h30. Agora, é só achar no YouTube.  Vem aí a terceira. Salve 2018. Evoé novos episódios e novos artistas.

As televisões querem debater os temas dessa nossa nova terra que ainda tem palmeiras onde canta o sabiá. Apenas o sabiá não sabia, não sabe nem saberá que tudo mudou: nascer, estudar, trabalhar, amar, criar filhos, ser líder, ter privacidade, envelhecer, morrer... nada é como era antes.

TerraDois também foi programa de sexta-feira à noite e de sábado o dia todo, 8 e 9 de dezembro de 2017. O papo no final de semana não era de bar, mas, para quem lá esteve, teve o arejamento de um happy hour. Um cheiro de Capim Santo. Horas felizes, concentradas e cheias de densidade em uma longa conversação clínica que mesclou vida e psicanálise, dois planetas em um só astro.

Esse programa não aconteceu no estúdio nem na TV. Tudo se passou em uma casa branca de vila, na rua Augusta, em São Paulo. A Conversação do Instituto de Psicanálise Lacaniana em 2017 debruçou-se sobre o programa apresentado pelo psicanalista Jorge Forbes e pela atriz Bete Coelho na sua segunda temporada, dirigido por Ricardo Elias e Mika Lins, com idealização de Forbes e de Marcos Amazonas.

Os trabalhos apresentados se dedicaram a fazer reflexões sobre alguns episódios do programa de TV. Entre performances, leituras, declamações e óperas italianas, os temas passearam pelo amor e pelo trabalho. Pelo DNA multitarefas que leva o chefe a virar chef. Pela envelhescência, que sugere  uma velhice menos velha. Afinal, em TerraDois o futuro será mais longo e viveremos muito mais, a ponto de escolhermos a hora da nossa morte. Amém. Ou a hora de acordar para viver.

Em TerraDois, o mundo pede reflexão e reinvenção criativa.  A reflexão não fecha. Abre. É como na dramaturgia, compara Bete Coelho, que junto com Ricardo Elias participou da conversação clínica. Jorge Forbes lembra que a moral acalma porque ela dá sempre uma lição. “A ética implica porque você  deve dar consequência. Se eu conseguir dizer qual é a consequência, eu refaço a moral”, ressalva ele.

Bete Coelho pede a palavra: “Na ética, você abre o final. Vejo da maneira dramatúrgica. Você suspende. Não fecha a questão,  mas levanta. Não reduz aquilo para uma historinha.”

Não reduz por um lado. Mas em TerraDois, reduzir também pode ser bom. Cinco dias de gravação viram 40 minutos de programa na TV aberta. “O maior desafio é traduzir essas reflexões em um programa para a televisão aberta”, diz Ricardo Elias. Ele conta que a decisão de reduzir o programa no último bloco foi técnica. O corte é bom. Na plateia, a psicanalista Teresa Genesini compara às sessões curtas de psicanálise e ao corte que impacta o analisando. “Se em psicanálise temos uma sessão curta, está se introduzindo uma forma de finalizar o programa e deixar a pessoa concluir”, intui Teresa.

Em TerraDois, o nosso futuro a gente inventa, sem se distrair. Mas o passado à frente do seu tempo ajuda e muito. Jorge Forbes abre a conversação clinica com uma narrativa histórica de Freud a Lacan. Isso dá sentido e sustentação à construção de um futuro de grandes novidades, mas não novidadeiro. Permanece na base o real - “O que não tem nome nem nunca terá. O que será que será?”, tal como canta Chico Buarque. Aquilo que volta sempre ao mesmo lugar...  

“A graça é saber que alguma coisa sempre falha ou falta”, diz Forbes. No mundo blackmirror das selfies e stories de instagram, onde a privacidade perde cada vez mais o seu espaço, é preciso lembrar que o íntimo não é tão simples de ser revelado: “Por mais que as pessoas sejam filmadas, fotografadas, tudo aquilo que é capturado de você não é você.”

Já estamos em TerraDois, onde tudo é múltiplo e flexível, mas lembremos que o tempo é de melancolia e pessimismo no Brasil e no mundo. As transformações são radicais e não há como não ficar atordoado com tanta mudança.

Uma explicação para a melancolia: “Utilizo a diferença que Freud faz entre luto e melancolia. Freud entende que no luto, a perda é objetiva, clara, e que existe um retorno da libido e a pessoa consegue se reinventar no mundo”, comenta Forbes. “Na melancolia, isso se prolonga muito além do tempo do luto. A melancolia faz com que a pessoa se volte para si, não com a libido, mas com o próprio objeto que foi perdido. Ela se identifica com o objeto perdido e prolonga por muito tempo a sua sensação de mal-estar.”

A melancolia no mundo e no Brasil se explicaria, portanto, muito além de Donald Trump, da volta do fascismo, do fenômeno dos refugiados, da corrupção sistêmica à céu aberto no Brasil, de Lula, Temer, Bolsonaro, dos  recentes levantes homofóbicos e dos episódios de racismo. Para Forbes, nós perdemos a referência vertical que tínhamos. Na sociedade ocidental, é a referência paterna.  “Quando se perde essa referência, você perde maneiras de se medir, maneiras de recuperar a sua identidade”, explica o psicanalista. “E enquanto você não consegue fazer isso, a maneira que o ser humano faz para recuperar sua identidade é sempre se achando errado. Porque quando a gente não consegue estar bem, a gente sempre pensa que cometeu um  erro. Um exemplo eficaz:

Quando alguém passa e não lhe cumprimenta, você entra numa crise de identidade. A pessoa não me viu? Mas o que eu fiz para ela fingir não ter me visto? Resposta rápida: Se eu não tenho identidade é porque fiz alguma coisa de errado. E a culpa é uma forma de recuperá-la. Isso nada mais é  do que Freud, ressalva o psicanalista.

“Existe, por exemplo, a euforia depressiva, termos aparentemente contraditórios, Mas, está todo mundo deprimido. Nem vou perguntar em quantas bolsas há antidepressivos, mas no mundo atual existe essa sensação generalizada e melancólica”, provoca Forbes. “ Não acredito que essa melancolia seja fruto de um distúrbio de que de repente, as enzimas e os neurotransmissores piraram”. Para Forbes, foi a mudança de época que nos levou a uma depressão generalizada. E, diga-se de passagem, não é o caso de se jogar lítio nos reservatórios de água para todo mundo ficar alegrinho aos borbotões, tal como já se fez com o flúor para se evitar cáries.

Possível recado de um errante navegante aos pessimistas: é preciso saber remar nesse novo mundo sem bússolas. Lembra Forbes que se forem necessários 500 anos para corrigir os 500 anos passados, então não vai ter jeito... “Daqui a 500 anos vamos precisar mais 500 para corrigir...” Que a incompletude deixe de ser um bicho de sete cabeças. Que se invente um novo laço social e que se usufrua o melhor deste novo tempo, desta TerraDois.

... Que a força mande coragem. Pra gente te dar carinho. Durante toda a viagem. Que realizas no nada. Através do qual carregas... o nome da tua carne. Terra... Terra... TerraDois. Por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria.

 

Gisele Vitória é jornalista. Foi diretora de núcleo das revistas IstoÉ Gente, Menu e IstoÉ Platinum, da Editora Três, e colunista da revista IstoÉ. Também passou pelo Jornal do Brasil, O Globo e Rádio Globo. Hoje atua como consultora de comunicação e é diretora na GBR Comunicação.


Data de publicação: 14/12/2017