Sem Victor não há Victoria

Letícia Genesini

Sem Victor não há VictoriaInterpretar não é pôr na tela ou no palco aquilo que você já tem, mas é sua capacidade de traduzir uma nova essência

Com a festa do Oscar, termina mais uma temporada de premiação do cinema, marcando os grandes vencedores do ano. Em 2014, Jared Leto foi um deles. O ator e músico de banda de rock “30 Seconds to Mars” ganhou, por sua interpretação em “O Clube de Compras Dallas”, o reconhecimento de público e crítica como um bom ator (e não apenas um músico que atua), conquistou , mais de 30 prêmios e estatuetas, incluindo o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e, claro, uma legião de descontentes.

É de se esperar que tanto sucesso ressoe mal na boca de uns, mas a questão aqui é mais polêmica: o que estão questionando é a legitimidade de um ator homem e heterossexual ter interpretado Rayon, uma personagem transexual. Sim, é possível dizer que atores e atrizes transexuais não possuem espaço suficiente nas grandes produções, ficando à margem do processo; sim, pode-se dizer que há ainda preconceitos e movimentos contrários a eles , mas, como disse Chico Buarque, “talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”. Assim, é fundamental entender que hoje nos encontramos em um novo cenário.

Dizer que Rayon deveria ter sido interpretada por um transexual é resolver um debate complexo com régua e compasso: cria-se uma cota. Mas a arte – e a vida – não é Censo, não é dado do IBGE, não é plano de estatística. O incômodo com o status quo é válido, mas a forma de se elaborar a queixa é estagnada e antiga para um mundo fluido e pós-moderno, pois nega à arte e à vida exatamente aquilo que reivindicam os transexuais: liberdade e indefinição de papéis sociais.

Em um mundo em que em Julie Andrews nos encantou com “Victor e Victoria”, Cate Blanchet encarnou Bob Dylan em “Não Estou Lá”, Scarlett Johansson quase deu vida a um sistema operacional em “Ela”, e Linda Hunt ganhou o Oscar por ter interpretado o fotógrafo Billy Kwan, em “O Ano que Vivemos em Perigo”, é preciso criar um novo discurso além da postura de minoria.

Interpretar não é pôr na tela ou no palco aquilo que você já tem, mas é sua capacidade de traduzir uma nova essência. O intérprete é um mensageiro que nos traz uma história que não é nossa, nem dele. E foi isso que Leto fez, não por aquilo que ele é, mas por sua maestria em dar vida a uma história alheia.

Letícia Genesini é escritora, designer e corredora aficcionada. Publicou os livros de poesia "umponto" e "entre" pela editora 7letras.

Data de publicação: 03/04/2014