Salvador Dalí: um Sinthome?

Carla Almeida

Salvador Dalí: um Sinthome?A obra de Dalí faz ressoar no corpo algo da ordem do inexplicável, do real

Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech (1904-1989), conhecido como Salvador Dalí, foi um importante pintor catalão, notório pelo seu trabalho surrealista. Neste ano, mais de cem pinturas e gravuras do pintor chegarão ao Brasil e serão expostas, a partir de maio, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, e, em outubro, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Olhar para as obras desse grande surrealista permite-nos, dentre outras coisas, visualizar de que forma a loucura nossa de cada dia pode ser transformada em obra de arte. Guardadas as ressalvas necessárias, pode-se pensar que assim como o escritor James Joyce, o pintor Dalí forjou um sinthome, ou seja, a construção de um modo de estar no laço social, de tocar o outro, que não passa pela comunicação, mas que toca o outro por meio de uma manifestação estética singular.

O próprio Dalí reconhecia sua loucura. Contudo, se esse reconhecimento ficasse somente no nível da informação, hoje o mundo não reconheceria a obra do pintor catalão. Mas, assemelhando-se ao escritor irlandês James Joyce, que construiu uma obra singular por meio de uma escrita única, Salvador Dalí revolucionou a pintura da época com seus quadros.

Nas palavras do pintor, publicadas no livro As paixões segundo Dalí, “[...] devo ser o único de minha espécie a ter dominado e transformado em força criadora, em glória e alegria uma doença do espírito tão séria. E isso consegui por amor e por inteligência. [...] assim pude transformar a torrente dionisíaca em realizações apolíneas, que quero cada vez mais perfeitas” (pp. 53-4).

No disparatado embate entre o delírio versus realidade, Dalí fez um motor criativo para sua obra que está entre as mais importantes do século XX. Ele conseguiu forjar um modo de sair do devaneio e se sustentar, pela pintura, enquanto sujeito capaz de produzir algo diferente. Assim, o devaneio, que poderia ser apenas loucura, foi transformado em obra de arte. Seus quadros foram estruturados em torno de um desejo doentio pela mulher, Gala, que foi retratado em seu trabalho de diversas maneiras.

O sinthome, portanto, para Dalí, teria sido um modo do pintor estabilizar a sua estrutura paranoica. Por meio da arte, criou um mecanismo de suplência juntamente com seu amor a Gala. Conseguiu fazer uma grande obra de arte que marcou sua “ex-sistência”.

O próprio Jacques Lacan, desde o início de seus estudos, interessou-se por Dalí, a ponto de, em 1931, procurá-lo para uma entrevista. À época, Lacan escrevia seu doutoramento a respeito da paranoia, e o pintor, então com 26 anos e já conhecido, defendia, contrariando muitos psiquiatras de seu tempo, que a paranoia era uma atividade criativa.

Como relatado por Jorge Forbes, no texto A presença do analista, Dalí ficou muito entusiasmado em ser entrevistado por Lacan, a ponto de se esquecer de tirar, do seu nariz, um papelzinho em forma de ferradura, usado para proteger sua vista. O papel ficou lá durante as duas horas de conversa entre os dois. Olhando Dalí com interesse, Lacan agradeceu-o e saiu.

Foi somente quando retornou ao trabalho e viu-se diante do espelho que o pintor se deu conta de sua “gafe”. Como colocado por Forbes, “O jovem Jacques Lacan não fez o cômodo e óbvio comentário: ‘olha, Sr. Dalí, tem um papel no seu nariz’, ‘o Sr. se esqueceu de tirar...’, como seria convencional. Seria regrar o encontro, submeter o outro ao esperado, torná-lo normal, na satisfação de ser o normal que nota o outro. Lacan também não quis se fazer notar por conta do que viu, e não perguntou, como um pesquisador curioso: ‘por que o Sr. usa esse papelzinho...?’”.

Com seu silêncio, Lacan pôs em destaque o desejo de Dalí. Forbes usou esse exemplo para comentar a diferença que faz a presença do analista, já que ela põe em evidência o desejo e a singularidade da pessoa, pois, “o desejo, como o Real, está sempre lá e pode ser considerado. O desejo não se ausenta”.

A obra de Dalí faz ressoar no corpo algo da ordem do inexplicável, do real. Preparemo-nos para as exposições!

Carla Almeida é Psicanalista, Bacharel em Direito, Especialista em Educação, Mestranda pela EPM-UNIFESP e Membro do Corpo de Formação do IPLA.

Data de publicação: 08/05/2014

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