Por um triz

Letícia Genesini

Relendo “A revolução do Amor” de Luc Ferry

O filósofo francês Luc Ferry em entrevista com Jorge Forbes  à IstoÉ Gente (publicada também neste site), conversou sobre um de seus mais recentes trabalhos “A Revolução do Amor”. O livro traz um panorama da história da filosofia para narrar os tempos de hoje, denominado pelo autor como um segundo humanismo, que aprofunda a morte das transcendências iniciadas no primeiro humanismo, e revela o amor como o laço que nos une.

A obra é uma análise muito lúcida do intricado e interessante momento que vivemos, com muita ressonância com a visão que a psicanálise nos tem apresentado deste novo mundo. Exatamente por isso, a análise de  ‘Macho, masculino amor’,  um questionamento nascido da entrevista de Forbes e Ferry, e também publicado neste site, me surpreendeu.

O texto parte de uma paráfrase “Mulheres mais livres tornam os homens mais espertos”, nascida de uma fala de Ferry na entrevista, invertendo a afirmação para se perguntar: homens mais espertos tonariam mulheres mais livres? A partir desta inversão a conclusão apresentada pelo texto seria que Luc Ferry vê a relação das mulheres fadada ao fim se de fato vivida:

“ Segundo esse raciocínio, se uma mulher deseja fazer o amor durar, o melhor seria manter-se virgem! Essa impressão se reforça quando, em 1921, no texto Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud diz, explicitamente, que é ‘o destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz’ ”. (Claudia Riolfi)

Eu li no texto escrito por Cláudia Riolfi uma interessante análise psicanalítica da relação amorosa da histérica, mas não li lá “A Revolução do Amor” de Ferry.

Como leitora e autora posso afirmar, o melhor caminho que uma obra pode tomar é fazer nascer novas discussões, mas é da natureza da palavra nos pegar peças. No texto de Riolfi algo fica pelas entrelinhas: a chave da leitura para seu artigo é entender que ele associa a fala “mulheres mais livres” à análise que Ferry faz em seu livro do crescente número de divórcios da contemporaneidade recorrente ao nascimento do frágil casamento por amor — mas em Ferry esta associação não se estabelece.

Na fala original da entrevista isto já se torna mais claro:

“Há a emancipação das mulheres, que é a melhor notícia do século, porque não existe homem livre sem mulher livre. Não há homem inteligente sem mulher inteligente. Isso torna nossas vidas amorosas infinitamente mais interessantes do que antes. O mundo é mais inteligente do que antes”. (Luc Ferry).

A liberdade à qual Ferry se refere não é estar livre do amor e da relação amorosa, mas sim a liberdade de um lugar social estático e definido. Um dos presentes do humanismo é o rompimento da visão do homem como detentor de uma natureza predestinada, e assim o nascimento dos direitos humanos, inclusive o direito das mulheres. E em “A Revolução do Amor” isto se torna mais explícito:

“A definição do homem como ser que não tem definição, como aquele que transcende todas as categorias, todas as essências e todos os arquétipos (...). Se não existe ‘natureza humana’, significando que uma essência predeterminaria a existência do ser humano, então nós possuímos o fundamento dos direitos do homem, do anticomunitarismo, do laicismo, do antirracismo e do antissexismo, em resumo, de toda a moral republicana e democrática.” (Luc Ferry, 2012, p 172)

Mas sim, Ferry também diz que o amor fragilizou o casamento — mas como não?

Uma das análises centrais de seu livro é o nascimento do casamento por amor, uma invenção extremamente recente, com menos de um século de existência, segundo o autor. Se por séculos o casamento em nada tinha a ver com o amor, mas sim com a criação de uma instituição que formava um dos pilares da nossa sociedade, hoje tudo mudou. Como aponta Jorge Forbes, não nos juntamos mais por dever ou obrigação, mas pela simples vontade de estar juntos. Vontade que pode ser em um momento avassaladora e no segundo acabar — não se trata de histeria frente ao amor consumado: como negar que uma instituição milenar apoiada pelo dever à transcendência não seja mais estável que o amor?

Por todas as qualidades que o amor traga, estabilidade e segurança não é uma delas. Disse melhor Chico Buarque, “para sempre é sempre por um triz”. E se a estatística mostra que metade dos casamentos acabam em divórcio, como aponta Ferry, por que seria isso uma má notícia? O fato que metade dos casamentos sobrevivem mostra uma inexplicável e surpreendente resiliência do amor, uma in-crível (como diz a palavra, impossível de crer) ideia, mas real.

E é exatamente aí que Ferry encontra a psicanálise: a visão de uma contemporaneidade em que, contrário a todas as regras e lógicas, algo frágil e instável como o amor é capaz de construir o improvável laço sobre o qual hoje traçamos nossa vida.

Letícia Genesini é designer e escritora.

Data de publicação: 02/10/2014