O presente, em sua dupla acepção de tempo e de objeto que se oferta, espelha a complicação. Não importa o esforço, a busca, a invenção, você está condenado a errar na sua escolha de presente
Ele trocava as etiquetas dos vestidos de sua mãe todos os
Natais. Demorou muito tempo para que seus sete irmãos descobrissem a trapaça
afetiva do mais velho. Todo ano era a mesma coisa: só ele acertava o manequim
correto, número 42. Não havia nada que fizesse sua querida mãe perder o
corpinho voleibolista dos seus 20 anos de doce memória: nem o peso da idade,
nem a vida sedentária, nem o refinamento gastronômico. Ela, a mãe de todos,
bonita e inteligente mulher, desfilava orgulhosa o presente do queridão, o
primeiro filho. O único que tinha bom gosto e bom olho, que acertava suas
justas medidas, que não comprava aquelas roupas 44, ou 46, que ela nem iria
experimentar, pois eram para uma mulher muito mais velha e gorda: a prova
estava dada.
O queridão sorria orgulhoso e cínico, feliz pela reafirmação de filho
preferido, feliz pela cara abobalhada-raivosa de seus irmãos. Só ele sabia como
vestir uma mulher tão especial, a mãe. E o truque era simples, uma banal troca
de número, sempre pelo 42, que ele mesmo costurava.
Esta é uma história verídica. Ela conta um dos mais corriqueiros fenômenos que
ocorrem nesse tempo natalino: a Expectativa. Expectativa com e maiúsculo, pois
diz respeito a fatores fundamentais da identidade: como sou visto, como sou
querido, como sou medido. Um mene mene tekel ufarsim, que o profeta Daniel
soube interpretar. Se todo ano se renova a possibilidade é porque o erro é
frequente e o acerto é raro: só com truque, como já foi visto. Como esperar que
o outro saiba o que eu quero, se nem eu mesmo sei e nem ele sabe o que quer?
Não dá, a promessa de briga é certa. Aliás, sob este aspecto e não sob a
politicamente correta visão de paz universal na fratria humana, o Natal é
muitas vezes festa de briga com hora marcada.
O presente. O presente, em sua dupla acepção de tempo e de objeto que se
oferta, espelha a complicação. Não importa o esforço, a busca, a invenção, você
está condenado a errar na sua escolha de presente. O máximo que vai conseguir é
o 'quase-isso'. Se o presente for caro, o que vai interessar é se você foi
pessoalmente comprá-lo; se for barato, uma lembrancinha respeitando o cinto
curto, você vai ser acusado de regulador e ímpio, pois nem no Natal se solta e
confia no futuro; se for roupa, ou livro, você será interpretado como aproveitador
do Natal, pois roupa você ia mesmo ter que comprar e livro é uma forma sutil de
você impor suas preferências intelectuais; se for um vale-viagem, ou
restaurante (para não dizer refeição), você vai ser visto como preguiçoso, que
só dá presente de papel; se for uma joia, vão dizer que você está pensando na
herança de seus filhos; se for um brinquedo, ou um jogo, invariavelmente você
vai comprar o que ele já tinha, ou o modelo ultrapassado, ou, pior, você nem
vai comprar, ficando humilhado pelo preço astronômico; enfim, como dizem os
franceses, em sua discreta grossura: un bâton merdeux.
Não tem lado bom para se pegar. Melhor retirar-se, diria a etiqueta da
prudência, por um compromisso inadiável, antes da abertura dos pacotes,
deixando Papai Noel em seu lugar. Afinal, foi também para isso que o
inventaram: reclamações, só na Lapônia. Ponha o que trouxe sob a árvore com um
bilhetinho simpático e saia de mansinho logo no início da sobremesa. Você já
reviu todo mundo - vai ter um ano para lembrar ... -, já conheceu os novos
agregados, já computou as baixas, já disse quatro vezes: Como cresceu! outras
tantas: Como você (ainda) está bem!, já comeu panetone, peru, porco, fios de
ovos, pêssegos e nozes, como no ano passado e nos anteriores, você já se convenceu
que no ano que vem tem mais. O presenteado vai encontrar seu bilhetinho e, com
sorte, vai suspirar: Puxa, que presente legal e ele nem mais está aqui!
É assim, o presente é sempre de um outro lugar, com etiqueta trocada. Feliz
Natal.
Jorge Forbes é psicanalista. Artigo publicado no jornal ESTADO DE SÃO PAULO - Aliás, em 19 de dezembro de 2004.
Data de publicação: 17/12/2015