Heterossexualidades

Marcelo Veras

Por melhor que seja o encontro sexual nunca haverá completude. Felizmente, pois a condição para o desejo é a falta e não a presença

Não pude deixar de refletir um pouco sobre o delicioso filme de François Ozon, Uma nova amiga. Não gosto de spoilers, então tentarei poupar os que não viram o filme das reviravoltas da trama que vão até a última cena: uma simples cena de uma família buscando a filha na escola, em um belo dia ensolarado e com uma suave trilha sonora ao fundo. A trama tem elementos facilmente reconhecíveis de filmes como Fale com ela, de Almodóvar, ou mesmo Vestida para matar, de Brian de Palma. Para mim, o maior mérito do filme foi contar com humor e delicadeza um tema árduo e indigesto para alguns. Refiro-me aos que reagem indignados aos novos arranjos familiares e a diversidade por vezes vertiginosa de situações que envolvem as parcerias contemporâneas.

O filme mostra a confusão que surge quando tentamos adequar os ideais tradicionais de construir uma família, ter um emprego e uma comunidade de amigos ao caleidoscópio combinatório das escolhas do sexo que se quer ser ou se quer ter. Há muito que a questão homo/hétero não dá conta da pluralidade de papéis que habitam a comédia dos sexos. Se o tema das novas formações familiares começa a tornar-se batido, a delicadeza com que a atriz Anaïs Demoustier interpreta a tímida Claire, acostumada a viver à sombra de sua melhor amiga desde a infância, faz com que a história absurda pareça um caso de nossa família ou da casa vizinha.

Sem avançar nos spoilers, trago apenas o que se descobre logo no início e que será o leitmotif do filme, a contingência que nos une e nos desune, e que ultrapassa qualquer doutrinação dos corpos. Já nos letreiros de abertura vemos uma bela mulher sendo maquiada, o batom nos lábios, os cílios... até nos darmos conta de que ela está morta, em um caixão, e prestes a ser enterrada. Corte rápido para seu enterro, onde conhecemos Claire, a melhor amiga da falecida Laura, descrevendo em um discurso no púlpito o modo como se tornaram amigas inseparáveis desde a infância. Logo percebemos que a fascinação entre as duas tem algo de mórbido ou fusional, um tipo de amor impenetrável, mesmo a seus parceiros amorosos. Reduzir esse amor a uma relação homossexual recalcada seria a pior das simplificações a meu ver. O fato é que mesmo na escolha dos respectivos maridos percebemos a cumplicidade das duas.

Eis que, ainda sob um luto devastador, Claire vai até a casa da amiga visitar o viúvo e seu bebê e o descobre com uma peruca loura usando as roupas de Laura. Sob o olhar atônito de Claire, este lhe diz que sempre sonhou ser livre para usar roupas de mulher, vestir-se como uma verdadeira mulher. É da tensão entre esses personagens que surge toda a trama. O que um busca no outro? Laura? Uma nova amizade? A chance de realizar os desejos de ser ou de ter?

Desculpem-me se escrevo esse texto tão cheio de interrogações. Não sei se um exercício de estilo ou pura incompetência de obter respostas. Podemos extrapolar nossas indagações. O que buscamos verdadeiramente no outro? O que nos completa? Nossa própria imagem invertida? Nossa sexualidade se ancora no que somos para o outro ou o que somos para nós mesmos? O filme permite um passeio por essas perguntas. O fato é que a sexualidade humana é incapaz de se cristalizar exclusivamente no ser ou no ter. Querer se vestir de mulher não implica em hipótese alguma que a eleição de objeto seja um homem. Quando uma mulher ama outra mulher é por seus atributos fálicos ou precisamente pela falta deles? Sei, mais interrogações.

Uma grande polêmica foi criada quando o Facebook, na Argentina, ofereceu à seus usuários 54 possibilidades de identidade de gênero como opção de inscrição. Muitíssimo mais extenso, como vocês podem perceber, que apenas o par Homo/Hétero alvo de boa parte das críticas contemporâneas. Transgênero masculino, Travesti, Trans, as identidades foram tantas que a sigla LGBT, ou LGBTTT, poderia aumentar para quase um alfabeto inteiro.

Como a psicanálise pode entrar nessa conversa? Certamente, se ela se aferra ao mastro – hum, mastro é fálico – edípico, ela somente poderá ser usada por religiosos que acreditam poder separar e isolar a ameaça homo que assombra toda heterossexualidade.

Desde os anos 70, fica claro na obra de Lacan que o hétero, sua conotação, difere do uso corrente. Ser “hétero” conota habitualmente a norma sexual. Uns creditam a Deus, outros à estatística a prerrogativa da norma hétero. No pior dos casos, trata-se de uma heterossexualidade pautada no programa sistemático de fazer da condição humana uma pantomima da vida animal. Sempre desconfiei dessa tentativa. Os livros de educação sexual na minha infância eram impregnados dessa ideologia. Os ratinhos fazem assim, os coelhinhos fazem assim, os elefantes fazem assim, então papai e mamãe fazem assim. Ora, nunca consegui pensar em uma coelhinha (o mamífero lagomorfo da família dos leporídeos) vestida de coelhinha da Playboy para agradar seu macho. Ou seja, tentar fazer da sexualidade humana uma sexualidade “natural” é tão infrutífero quanto fazer do peixe espada um espadachim.

Com Lacan, surge uma nova perspectiva para a expressão “ser hétero”. Somos hétero não por conta da norma sexual. Somos hétero porque todos, independente dos 54 tons de identidades de gênero, temos que nos virar com a incompletude de nossa existência. Nenhuma identidade sexual deixará o sujeito ao abrigo da falta, condição para a busca no outro daquilo que nos falta. Por mais que busquemos no parceiro o mesmo, a contingência faz desse mesmo um outro. Isso acontece porque o mal-entendido entre os sexos é inerente à linguagem. Dois seres falantes nunca farão um.

Por melhor que seja o encontro sexual nunca haverá completude. Felizmente, pois a condição para o desejo é a falta e não a presença. Só desejamos porque algo falta. Assim, podemos deslocar um pouco a questão que já foi muito analisada por Judith Butler, e que não deixa de ser uma crítica desta à psicanálise. Butler acha esgotado pensar a sexualidade entre ser/ter um homem ou uma mulher. É verdade que a Psicanálise foi pioneira ao abordar a sexualidade através da castração e do falocentrismo. Lacan, contudo, avançou e deixou essa questão para trás ao cunhar sua famosa tese de que “A” mulher não existe. No fundo o que ele trouxe ao mundo é que, se um lado de nossa sexualidade é sempre falocêntrico, outro lado, o da incompletude, sempre nos leva para uma parceria impossível. Somos hétero porque sempre nos relacionamos com esse parceiro “outro”, que não existe. Assim, a lista do facebook poderá acrescentar mais 50 identidades de gênero, seguindo Lacan, continuaremos hétero.

 

Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise

Data de publicação: 13/08/2015