E se formos além?

Gisele Vitória

NOTA: Esse texto foi comentado nesta semana, na terça-feira 25/10/16, no curso semanal de Jorge Forbes, como memória da aula anterior, dando continuidade ao estudo do tema que trabalha atualmente – as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.

Se (Rudyard Kipling)

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

 Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

O poema “Se”, do escritor indo-britânico Rudyard Kipling (1865-1936), Prêmio Nobel de literatura em 1909, foi dedicado ao seu filho caçula, John, quando ele tinha 12 anos. “Se” é uma reunião de conselhos ternos para o menino, que morreu aos 18 anos no front da Primeira Guerra Mundial. “Se”, do autor que também é chamado de profeta do imperialismo britânico, seria ainda uma espécie de símbolo dos Cadetes da Academia da Força Aérea. “Se”, que trataria com igual desconfiança ricos e pobres, também serve à psicanálise. Na aula do seminário Terra 2,  no dia 18 de outubro, o psicanalista Jorge Forbes citou o poema de Kipling para demarcar a posição da psicanálise frente aos conceitos do transumanismo e do pós-humanismo.

A resposta psicanalítica seria Kipliniana. Não está nem no transumanismo nem no pós-humanismo. O transumanismo entende que há novas maneiras de ver o mesmo humano, enquanto o pós-humanismo inaugura uma nova espécie. A psicanálise não se identifica com nenhum dos dois conceitos porque só sabe que nada sabe sobre o ser humano. Na psicanálise, a definição do ser humano é exatamente aquilo que não se sabe. É a pedra no meio do caminho. É o nada, a falha, o gozo. É o desejo. Na obra “O ser e o nada”, de Jean Paul Sartre, o ser é o animal e o objeto. O nada somos nós. Ou, se preferirmos  o poeta Arthur Rimbaud, o “Eu é um Outro”. Ou seja, eu só consigo ser quando outro sou. Na mesma linha, Jacques Lacan corrige Descartes, em seu “Penso, Logo Existo”. Para Lacan, é diferente: “Eu penso onde não sou. Sou onde não penso”.

A lupa da criatividade

Os psicanalistas atuam na “alta costura” da singularidade. Diz Forbes: “Nós buscamos a roupa para cada um, enquanto a psicologia já tem a resposta pronta: “Num primeiro momento, você vai ficar assim... num segundo momento assado...no final, acossado. Ou seja, um pret à porter psicológico”. Tais terapias têm a sua função social, afirma o psicanalista. A da psicanálise não é essa. O objetivo da psicanálise seria manter a essência do ser humano na sua criatividade. Os demais trabalhos “fast-fashion” encobririam o ponto sombrio do sintoma ou, de certa forma, proibiriam o exercício da essência humana: a sua criatividade.

A criatividade está na essência humana. Diferentemente do homo sapiens, um João de Barro Frank Ghery ainda não foi inventado. E se o fosse, deixaria de ser João de Barro. Se o trabalho dos psicanalistas é fazer com que uma pessoa se depare com o real -- que é exatamente a falta da realidade -- é porque apostam que existe um ponto de amarração. É estranho, mas pode ser a vergonha. Pode ser também o sintoma. “Devemos entender quem organiza o mundo além do pai, ou o mundo pós-edípico”, diz Forbes.

O caminho da vergonha e do sinthoma

Por que a vergonha? No Seminário 17, Jacques Lacan chama atenção para o sentimento de ultraje, desonra ou humilhação na sua forma mais aguda. Há que se lembrar: os animais lutam pela sobrevivência. O homem luta pela vivência. Se não tivermos certas coisas, para muitos de nós, não interessa continuar vivendo. O suicídio do cozinheiro francês François Vatel, a quem é atribuída a invenção do chantilly, é exemplar. Em 1671, Vatel, que fora segundo cozinheiro de Luiz XIV, decidiu por fim à vida ao se dar conta que não havia chegado peixe suficiente encomendado para o banquete de três dias de Louis II. de Bourbon, o Grande Condé, oferecido a Luiz XIV no Castelo de Chantilly. Para Vatel, a vergonha era mais insuportável do que o medo da morte.

Para tanto, Forbes lembrou que há duas mortes: a morte social e a morte biológica. Talvez o assassinato social seja muito mais implacável do que a vivência num presídio, a exemplo de casos recentes de políticos e figuras poderosas brasileiras.

Se a vergonha é a primeira resposta en passant de Lacan para a pergunta “onde amarro a minha égua” no mundo, a segunda resposta vem à cavalo: eu amarro a minha égua no sinthoma. Sim, sintoma com H. Na busca incessante da espécie humana por uma bússola pronta a nos conduzir, sinthoma é o sintoma primordial que não pode ser decifrado. É nele que as neuroses se ancoram.

O ponto de amarração pode ser como o Real, que, na língua do P dos psicanalistas é tudo o que está fora de toda a realidade.  O Real é tudo que sempre volta ao mesmo lugar, na definição de Lacan.

Podemos voltar ao mesmo lugar terminando com Kippling, pinçando um trecho do poema “Se”, ponto de partida deste texto:

“Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo.”

P.S.: Não acabou...

Descubro, depois do ponto final, que esta ata responde à teoria da incompletude. Ou seria um espelho do Real da aula de 18 de outubro de 2016, do seminário Terra 2? A ata passou longe do tema central da aula do dia 18, que aliás foi o Dia do Médico: falamos sobre a regulação das relações sociais na uberização no mundo. O tema foi brilhantemente exposto nos textos da advogada Tatiana Valladares (O Vetor Infinito – a psicanálise e o Direito em Terra 2) e da jurista e psicanalista Dorothee Rüdiger (O trabalho em Rede e a Responsabilidade).

A ideia foi mostrar como os advogados reagirão à uberização do mundo, frente ao airbnb, aos dilemas genéticos e frente até mesmo à eutanásia. A junção de questões de saúde com temas da vida social não é coincidência. O filósofo francês Luc Ferry defende a necessidade de uma grande regulação, oriunda de uma ampla discussão entre políticos e intelectuais.

No texto de Tatiana, os desafios do Direito consuetudinário diante dos novos tempos são discutidos. Ao final, Jorge Forbes pontuou o olhar interessante sobre a verticalidade no Direito consuetudinário,  lembrando que o Direito dos costumes respeita a história dos costumes.

Ele também comparou a noção do eterno retorno de Nietzche com os versos de Cazuza na canção “O Tempo não Para” (“Eu vejo o futuro repetir o passado/eu vejo um museu de grandes novidades...”), com os quais Tatiana abriu seu texto.

Forbes acrescentou que o olhar de Cazuza sobre o passado que se repete no futuro não é o mesmo olhar de Nietzche.

Segundo ele, as pessoas tendem a associar o eterno retorno de Nietzche, como fatos que sempre voltam.  Seria oportuno dizer que o eterno retorno de Nietzche é a base do eterno retorno de Lacan. “Não é o mesmo que volta”, diz Forbes. “Volta sempre porque nunca esteve. É 180 graus de diferença. Faz mais sentido entender Nietzche dessa forma do que entendê-lo na característica decepcionante daquilo que voltou ao mesmo igual.  Na verdade, a eterna volta ao que nunca esteve é bem mais interessante.”

Em seu texto, Dorothee Rüdiger fecha o tema com as relações do trabalho na sociedade uberizada: “Se antes o planejamento fordista restringia a responsabilidade empresarial, hoje a flexibilidade nas relações do trabalho têm como consequência a exigência de uma tomada de atitude: bancar o que escapa das malhas da rede. Bancar o que Jacques Lacan chama de  O Real”.  Ela indica um caminho pela teoria do domínio do fato e defende que isso é um chamamento à responsabilidade. “O domínio do fato é uma criação jurisprudencial, a regulação de toda a terceirização. São medidas que a justiça encontrou para responsabilizar pessoas (ou grandes empresas) que se beneficiam da exploração do trabalho precário, que é uma realidade”. Mas não é só aqui, Dorothee ressalva. O Brasil, por sinal, é um exemplo positivo no campo jurídico de como se lida com isso. A problemática do trabalho escravo é pior na Europa do que no Brasil. Há, por exemplo, denúncias de grandes grifes que se valem de trabalho escravo chinês em Milão, na Itália.

E o que isso tem a ver com o nosso objeto de estudo? O elo é a exploração de tudo o que é valorativo. É a ideia de valer-se das mais variadas formas de trabalho que se inventam e reinventam hoje.  “A questão é: para que serve a flexibilização? Serve para melhorar a vida de todos ou para desresponsabilizar empresas para não pagar os direitos dos trabalhadores”, diz Dorothee. De outro lado, ela enxerga uma tendência dos jovens em preferir a contratação como pessoas jurídicas. Desde que, como condição, eles possam trabalhar de uma forma independente.

Fica o sentimento de que Estado ainda é necessário para equilibrar a força dos donos dos meios de produção contra a fraqueza do operador dos meios de produção. Precisamos da regulação estatal ou acreditamos no liberalismo total? Eis a questão. Devemos ir além.

 

Gisele Vitória é jornalista, colunista da revista IstoÉ e diretora de núcleo das revistas Planeta, IstoÉ Platinum, da Editora Três 

Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 170 – 28 de outubro de 2016

Data de publicação: 27/10/2016