Domar a indomável: a vida é um renovado contrato de risco

Elzira Yoko Uyeno

Em tempos de declínio do amor do Outro, o filme de Benh Zeitlin mostra que a carência material não determina a carência afetiva

Com o título de “Indomável sonhadora”, o filme do jovem diretor nova-iorquino Benh Zeitlin dá a ver uma das manifestações do laço social atual: a substituição da transcendência vertical pela horizontal e a sacralização da família. Vencedor do Grande Prêmio do Júri e do prêmio de fotografia, em Sundance 2012, e do prêmio Caméra d'Or, em Cannes 2012, a película recebeu ainda quatro indicações ao Oscar: melhor filme, direção, roteiro adaptado e melhor atriz. Este último, para a impressionante garotinha Quvenzhané Wallis, que tinha apenas seis anos à época das filmagens.

A meu ver, ao contrário do que o título possa induzir, não se trata de um filme piegas protagonizado por uma criança, nem mais uma estetização da miséria, como alguns se referem. “Indomável sonhadora” conta a história de Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) e de seu pai, Wink (Dwight Henry), que vivem ao sul da Louisiana, num lugar apelidado por seus poucos moradores de a "Banheira" – um ambiente devastado, periodicamente alagado, em evidente menção ao furacão Katrina.

Narrado pela garotinha, o filme flui sob a sua percepção infantil, a realidade da vida de carências materiais (e alimentícias) entre uma casa e um trailer semidestruídos, e reveste-se de uma dimensão fantástica pela evocação da menina dos auroques, um animal de pintura rupestre.

A coragem que Hushpuppy retira dessa vida de extrema pobreza, tecida pela relação tensa entre a ignorância e a dor do pai – pela misteriosa partida da mulher e mãe da garota –, poderia ser tomada como resultante de uma resiliência. A expressão, emprestada da física de materiais, designa a capacidade que alguns materiais têm de absorver impactos e retornar à forma original. Transposta para o comportamento humano, resiliência significa a habilidade de lidar e superar as adversidades, transformando experiências negativas em aprendizado e oportunidade de mudança.

A rudeza do pai, que se confunde com os auroques que aterrorizam a menina, tinha uma razão e teve um efeito muito maior sobre Hushpuppy: gravemente doente, prevendo que a filha ficaria órfã em breve, deixou a melhor herança que um pai poderia deixar a um filho: uma mensagem de vida. Essa mensagem pode ser colocada nas seguintes palavras de Forbes: “se doença tem remédio, a vida não tem; ela é um renovado contrato de risco. Surpresas, encontros, ocorrem todos os dias. Porém, o sentido que damos a eles é de nossa responsabilidade”, porque “de nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” (Lacan). A mensagem do pai foi ouvida pela pequena menina que, marcando a sua posição de sujeito do seu desejo, proferiu as seguintes palavras: “Daqui a milhares de anos as crianças terão escola e vão se lembrar de que uma menina chamada Hushpuppy e seu pai que moraram aqui”.

Em tempos de renúncias da identidade, a própria insistência do pai em permanecer no lugar, recusando ser retirado pelo governo, parece personificá-lo. Em tempos de declínio do amor do Outro, a grande mensagem do filme é que a carência material não determina a carência afetiva. O amor de Wink pela filha parece revelar aquela dimensão do amor apontada pelo filósofo Luc Ferry, segundo o qual o homem pós-moderno substituiu a transcendência vertical pela horizontal, a sacralização da religião pela sacralização da família (pela qual vale o sacrifício da própria vida. Isso porque, recorrendo mais uma vez às palavras de Jorge Forbes: “o amor de um pai por um filho não é explicável".

 

Elzira Yoko Uyeno, mestre e doutora em Linguística Aplicada (Unicamp), é docente e pesquisadora nas áreas de Análise do Discurso francesa e psicanálise do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da universidade de Taubeté-Unitau

Data de publicação: 08/08/2013

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