Da “Medicina 4P” para a “Psicanálise 4S”

Claudia Riolfi

NOTA PRÉVIA

O IPLA-Instituto da Psicanálise Lacaniana tem se dedicado a pesquisar as modificações subjetivas e do laço social, na pós-modernidade. Essas pesquisas se baseiam na Clínica do Real, de Jacques Lacan, para uma psicanálise do Século XXI, uma psicanálise do “Homem Desbussolado”.

Nesse caminho, temos desenvolvido estudos e pesquisas teórico-clínicas dos efeitos do confronto da psicanálise com a revolução NBIC. Essa sigla, ainda pouco conhecida, em breve será muito debatida. Ela se refere a quatro revoluções tecnológicas que se alimentam sinergicamente: Nanotecnologia, Biotecnologia, Informática, Cognitividade, criando um futuro impactante, chamado por alguns de transumanismo (outra das novas palavras).

Publicaremos, a partir de hoje, nesta Newsletter, algumas notas desse estudo em andamento no IPLA e no Projeto Análise. 

São Paulo, 3/12/ 2015

Jorge Forbes

PS: Já foi publicado na última edição, 142, de O Mundo visto pela Psicanálise, o texto de Alain Mouzat, Transumanismo, transgressão em grande velocidade ...

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DA “MEDICINA 4P” PARA A “PSICANÁLISE 4S”

 

O livro A morte da morte descreve o debate atual entre dois grupos de pessoas, definidos em função do acordo ou não da inclusão de tecnologias genéticas que transformam organismos vivos: os bioconservadores e os bioprogressistas.

Trata-se de um assunto que está despertando enorme atenção de biólogos, agrônomos, veterinários e médicos. Para se dar uma ideia inicial da extensão do debate, parece interessante dizer que a pesquisa em um site de busca, efetuada no início de novembro de 2015, com a palavra “bioconservador”, resultou em 3,650 entradas. Em que medida a polêmica interessaria à psicanálise?

Ao longo de 417 páginas, Laurent Alexandre não se inscreve, ao menos explicitamente, em nenhum dos dois grupos. Sua preocupação é política e ética. Por esse motivo, frente a inevitáveis revoluções tecnológicas, o autor se propõe a oferecer instrumentos para escolhas mais consequentes a respeito da sociedade e da humanidade que desejamos no futuro.

Aceitei seu convite e me propus a traçar uma reflexão inicial a respeito do destino da psicanálise caso as revoluções tecnológicas continuem seguindo o curso atual. Afinal de contas, dizer “sim” para Alexandre parece bastante coerente com Jacques Lacan, para quem o analista deve renunciar o exercício da psicanálise, se "não puder alcançar, em seu horizonte, a subjetividade de sua época" (LACAN, 1953. p. 322).[1]

Alexandre dividiu sua reflexão em três grandes partes. A primeira se dedicou a traçar um panorama das revoluções científicas que balançam a sociedade. A segunda, a afirmar que elas são uma resposta às demandas sociais pelo prolongamento da vida. A terceira, por fim, a alertar aos leitores para dar um tratamento político cuidadoso para os progressos científicos.

Assim, devemos entender que o presente texto, cujo objeto específico é o comentário do terceiro e último capítulo da segunda parte de A morte da Morte, está inserido em uma tentativa, por parte de Laurent Alexandre, de interpretar as demandas da sociedade atual. Intitulado Uma medicina que não cura mais... mas transforma, o capítulo consiste em uma exposição do modo como o autor entende as transformações em um pedido que, via de regra, é dirigido não só ao clínico como ao psicanalista: “- Cure-me!”. Na interpretação do autor, trata-se, em nosso tempo, de substituir o pedido de ser curado por outro: “- Impeça-me de adoecer”.

Laurent depreendeu essa mudança a partir de uma passagem sensível: aquela ocorrida a partir de uma medicina que se propõe a curar doenças já instaladas para aquela que se propõe a impedir a instalação de moléstias.

O capítulo foi organizado em três grandes partes. Na exposição que se segue, pretendo comentar o cerne de cada uma delas, detendo-me com maior detalhe nos aspectos que parecem trazer mais impacto para a clínica psicanalítica.

A primeira (Medicina 2050: da medicina de massa à medicina personalizada) dedica-se a expor o estado atual do progresso da medicina. O autor destacou a mecanização e suas consequências para a clínica e pesquisas médicas; as transformações conceituais envolvidas na concepção de uma “norma” que delimita a vida divisória entre “saúde” e “doença”. Na medicina do futuro, não será mais possível fazer referência a um funcionamento “normal” do organismo, uma vez que cada organismo funciona de um modo diferenciado (p. 176). Por esse motivo, cresce a importância da pesquisa pelos marcadores genéticos que apontam para o surgimento futuro de doenças. Cresce, também, a relevância da busca por medicamentos que levam em conta os milhares de parâmetros biológicos que são captados no paciente e podem ser levados em conta graças aos avanços da informática.

A segunda (Medicina darwiniana: ano zero) volta-se a combater dois preconceitos. O primeiro é o do raciocínio causalista. Na medicina do futuro, ao contrário do que se pode pensar, não se trata de estabelecer uma causalidade entre o mapa genético de alguém e o seu futuro. Alexandre postula uma lógica na qual a complexidade do ambiente no qual a pessoa vive seja integrada no cálculo da expressão do gene. O segundo é o do raciocínio dualista. Ao contrário do que pode parecer, ser bioprogressista não é ter uma postura desatenta à ecologia. As novas tecnologias podem beneficiar a conservação do meio ambiente, justamente porque podem tornar os gestos de preservação mais eficientes.

A terceira (Da medicina preventiva e preditiva ao indivíduo arquiteto da saúde) detalha a passagem que deu origem à medicina Angelina Jolie. Todo mundo sabe que seus médicos amputaram seus seios para impedir o advento de um câncer. O foco desse tipo de trabalho é a tentativa de determinar contra o que é necessário guerrear para assegurar o futuro do paciente (p. 190). Essa tentativa se assenta na construção de um programa genético para determinar o modo de tornar o mais inofensivo possível as fraquezas de cada qual. Vê-se que a visada é preditiva, em oposição à reativa.

Para Laurent, a criação da medicina Jolie muda a cultura. No novo laço, os pacientes terão uma atitude ativa com a gestão de seu corpo. São as pessoas que não dependem dos médicos, mas buscam informações a respeito de seus sintomas no Google. Elas se sentem à vontade com um novo tipo de médico. Seu exemplo é Bertolan Mesko, um jovem que, em sua página pessoal (http://scienceroll.com/), usa como mote “A jornada de um médico geek (alguém viciado em tecnologia, em computadores e internet) e futurista”.

No texto Dez dicas de como usar a web 2.0 na medicina (no original em Inglês 10 Tips for How to Use Web 2.0 in Medicine, disponível em http://scienceroll.com/2007/06/08/10-tips-for-how-to-use-web-20-in-medicine/), Mesko recomenda, dentre outros, o uso das mídias sociais, tais como o Second Life, as Wikis e as plataformas para a publicação de vídeos e podcasts. Em nosso próprio meio, o serviço “Alô Psicanálise”, do Instituto da Psicanálise Lacaniana-IPLA, está em consonância com a proposta do jovem médico.

O aporte descrito pelo autor é verídico. De novo, uma busca na internet mostrou que, no Brasil, várias empresas oferecem esse tipo de serviço. Partilho, na sequência, o conteúdo encontrado na página inicial da 4PGenômica® (http://www.centrodegenomas.com.br/sites/catg/localizacao.aspx). Essa empresa se propõe a vender, para os paulistas, a medicina 4P:

Personalizada: O tratamento é único para cada pessoa, porque cada indivíduo possui genes diferentes.

Preditiva: Consegue-se predizer se o paciente tem tendência a alguma patologia ou vulnerabilidade no seu bem-estar de acordo com o gene que ela tem.

Preventiva: Segundo o resultado do exame, é possível prevenir patologias ao mudar a expressão de alguns genes, mudando o estilo de vida e a alimentação do paciente, além do uso de medicamentos corretos e individuais que também podem modular a expressão do gene.

Participativa: Um item bastante importante, pois o paciente deve interagir e participar diretamente das orientações do nutricionista ou do médico.

No caso da 4PGenômica®, vemos que o poder acaba estando nas mãos do médico. Embora o traço “participativa” conste na proposta da empresa, ele é vago, pode ser visto, por exemplo, na direção de tirar dúvidas a respeito do conteúdo fornecido pelo outro. Penso que essa não pode ser a direção da psicanálise do futuro.

Para concluir, penso que podemos postular que a reflexão de Laurent Alexandre se aproxima daquilo que estamos fazendo para investir na continuidade da arquitetura, testagem e divulgação da segunda clínica de Jacques Lacan, uma psicanálise que inclui o não-todo, valorizando, de forma criativa, o abismo existente entre o que se pode capturar de uma pessoa por meio da ciência e o gesto de interpretação que cada um faz a partir das informações recebidas.

Brincando com conteúdo do site que acabei de apresentar, vou chamar nossa clínica de Psicanálise 4S:

Singularizada: O tratamento é único para cada pessoa, porque cada falasser (parlêtre) é afetado, de modo singular e intransferível, pelas contingências de seu encontro com o Real.

Sensível: De acordo com o modo como o paciente responde nos primeiros encontros com o analista, consegue-se verificar se o paciente tem tendência a sofrer de maneira irresponsável. Busca-se uma palavra sensível que, ressoando em seu corpo, o desaloja das rotas conhecidas do sofrimento prêt-à-porter.

Surpresiva: No decorrer do tratamento psicanalítico, a pessoa passa a lidar com a surpresa e o acaso e a se responsabilizar por eles. Isso permite que a pessoa module não só boa parte da expressão do gene como, também, os efeitos de sua história pregressa.

Social: O tratamento incide não só em quem diretamente se submete a ele, mas, também, altera a qualidade do laço social no qual ele está inserido. 

Claudia Riolfi é Psicanalista e Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo.


[1] Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem. Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Data de publicação: 10/12/2015

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