Da falta e do desejo

Liége Lise

Nas últimas semanas um livro infantil da Companhia das Letrinhas virou best seller na lista da Amazon. Um livro singelo, com ilustrações simples, chamado “A parte que falta”, de Shel Silverstein, mostra as aventuras de sua personagem principal que nascida sem um pedaço, busca a parte que lhe falta. Spoiler alert: no caminho ele até encontra outras partes, mas nenhuma era a parte que lhe faltava. Até que ele acha uma com encaixe perfeito. Tão perfeito que ele sente falta da busca em si, e termina deixando a parte e seguindo seu caminho.

A editora teve um empurrãozinho da Youtuber Jout Jout, que leu o livro para quase 1milhão e meio de seguidores, tornando-se o quinto vídeo mais visto no youtube brasileiro no dia da sua publicação. Sem precisar chegar em juízos de valor sobre o livro ou o canal, é inegável falar que a narrativa infantil tocou a todos. Se a conversa na internet não foi de tom psicanalítico, a reação foi, pois a falta que tocou a tantos, está no cerne da psicanálise.

A lógica da psicanálise é a lógica da incompletude. Sempre algo falta. Diferente do animal que encontra um objeto na natureza que o preenche e o completa, nós humanos somos insatisfeitos por natureza. E não é a satisfação das nossas necessidades: comer, dormir, brincar, trabalhar, que apazigua nossos corações e mentes. A insônia que o diga. É uma falta outra.

Qual? Não sabemos dizer. A falta “é de um tanto” que se ausenta até das palavras.

Principalmente delas. Porque entre o homem e o mundo, está a palavra, que nos desnaturalizou, que nos interpõe a isso que desejamos — que nem sabemos o que é, mas que insiste e resiste. Expulsou-nos do paraíso quando tivemos que expressar, além do balbucio e do grito, em prosa e verso, o que queremos. E o mal-entendido se fez carne e habitou entre nós. A impossibilidade de encontrarmos uma representação última, simbólica ou imagética, para dizer do que queremos é o que inscreve a falta atada ao desejo. “Palavra tão pouca, tão rouca, pra experiência tamanha.”

Melhor expressam os poetas. “O que será que será? O que não tem certeza nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não tem tamanho...”

Da nossa condição humana faltante e desejante, não há objeto, nem remédio. O que fazer perante a falta?

A insatisfação inscreve dois movimentos na vida: um é a queixa neurótica, à qual nos lançamos quando ficamos na expectativa de que algo ou alguém venha nos trazer essa completude. Daí entram as demandas amorosas ou de reconhecimento e reparação do outro que resultam na alienação do desejo: se sofro é porque não encontrei no mundo essa parte que me falta. 

Imaginariamente acreditamos na ilusão da completude e, muitas vezes, compulsivamente, nas opções que o mercado nos oferece de objetos de consumo para tamponar essa falta.

O outro movimento, é muito mais interessante. A falta quando não paralisa na queixa, vem a ser nosso motor. Afinal, só há desejo, se houver falta. E o desejo na psicanálise não tem objeto ‑ o desejo é o desejo de desejar. Ele é o motor da criatividade e que nos lança na invenção de respostas. No lugar da falta, não vem a completude, vem a responsabilidade pela criação. Esse é o movimento que a psicanálise aponta.

Diante da insatisfação, a psicanálise exige que ao invés de delegar sua felicidade ao objeto imaginário que lhe falta, o sujeito pode se responsabilizar e inscrever na vida esse desejo estranho, esquisito e singular.  Esse que no fim é a expressão mais genuína que uma pessoa tem para dizer de si, - que até a si mesma escapa -, e que se revela nas escolhas e caminhos, em nada retilíneos, nos quais ela traça a sua existência.

Liége Lise é psicanalista, membro do Instituto de Psicanálise Lacaniana - IPLA.

Data de publicação: 07/03/2018