“Colegas”: uma sagração à amizade

Elzira Yoko Uyeno

A condição de pessoas com síndrome de Down não impede que os personagens - e os atores - de "Colegas" se responsabilizem

Com um despretensioso título, "Colegas" arrebatou o prêmio de melhor filme do festival de Gramado de 2012. Internacionalmente, venceu o prêmio de público do 27º Festival del Cinema Latino Americano di Trieste, na Itália, ganhou o prêmio de Melhor Filme no festival de cinema International Disability Film Festival Breaking Down Barriers em Moscou (Rússia), além de ter sido exibido no Red Rock Film Festival (Utah, EUA).

Três jovens com síndrome de Down e apaixonados por cinema, inspirados por um filme, fogem, um certo dia, no automóvel do jardineiro do instituto em que vivem. Fogem em busca dos seus sonhos: Stalone quer ver o mar, Marcio quer voar e Aninha quer encontrar um marido. Saem do interior de São Paulo e vão até Buenos Aires, na Argentina, experimentando a liberdade e envolvendo-se em aventuras ao longo do percurso. Essa sinopse remeteria qualquer leitor a filmes das sessões da tarde de canais abertos destinados ao público teen, não fossem os atores principais.

São certamente a simplicidade do enredo e a singeleza do título, conferidos ao filme pelo diretor Marcelo Galvão, as responsáveis por dois efeitos pletóricos: a remissão a Canguilhem e a Lacan.

Ariel Goldenberg, de 24 anos, e Rita de Cássia Pokk, de 25, que fazem o casal Stalone e Aninha em "Colegas", ambos com síndrome de Down, também são casados fora da tela. Ariel trabalha como auxiliar de escritório numa corretora de seguros. Sua mãe, a artista plástica Corine Goldenberg, reformou a casa, em São Paulo, para que os dois pudessem viver com ela, mas usufruindo do máximo de privacidade. Não há como não remetermos a Goerges Canguilhem, para quem o critério do estabelecimento da normalidade é uma convenção, e esta, sujeita a determinismos sócio-históricos, na extensão de seus estudos por seu aluno Foucault. "Colegas" nos incita a pensar em quantos jovens foram impedidos de terem uma vida normal como a de Ariel e Rita, por não serem "normais"; em quantos jovens "normais" não têm uma vida tão normal como a de Ariel e Rita.

Ariel e Rita sabem que são diferentes. Quando o rapaz mencionou estar pensando em ter um filho, sua mãe argumentou sobre o risco de o bebê nascer com Down: Ariel fez vasectomia. Ela o levou a se responsabilizar pelo seu sintoma, o que remete ao último Lacan. Corine Goldenberg lembra que, aos 32 anos quando o teve, sentiu ''medo, tristeza, revolta''. Diante do novo e do desconhecido, entretanto, ela inventou, criou a forma de cuidar do filho: nunca tratou o caçula de forma diferente, tendo lhe oferecido ''todas as chances que seus irmãos tiveram''. ''Ariel lê, escreve, usa o computador e toca bateria muito bem''.

Corine foi contra uma tendência social de dupla acomodação: os que sofrem, na resignação, e os que cuidam, na compaixão. Menos compaixão e mais solidariedade, no sentido de articulação das solidões, de amizade, fazem a vida melhorar. Esses princípios foram corroborados por pesquisas, elas próprias frutos da parceria entre o Centro de Estudos do Genoma Humano - USP e o Instituto de Psicanálise Lacaniana. Corine ratifica esses resultados: dedicou a Ariel um novo amor pautado na invenção e na responsabilidade em lugar do amor antes calcado na tradição e na disciplina.

"Colegas", enfim, resgata a amizade, "fundamental para os tempos em que vivemos, de individualidades desgarradas. Não é necessário ter pena – sempre discricionária – de alguém para se estar junto". Menos compaixão e mais simpatia solidária fazem a vida melhorar e valer a pena (Forbes, 2007).

Data de publicação: 11/04/2013