A cadela e a cinta liga ou os mistérios do gozo

Dorothee Rüdiger

A civilização nos permite satisfazer nossas necessidades: comer, dormir, perpetuar a espécie....  Mas, não tem no supermercado da civilização exatamente aquilo que desejamos. Tem arroz , feijão, bife e salada, tem o que satisfaz as necessidades. No entanto, sendo humanos, queremos mais que isso.


Vamos logo de início a uma questão de fundo: qual é a diferença entre a vida animal e a vida humana? Parece uma questão banal.  Afinal, ao menos pelas ciências biológicas e farmacêuticas, nós, os seres humanos, somos pouco diferentes dos animais. O tempo todo somos comparados com ratos de laboratório, cachorros que babam ao ver comida ou chimpanzés que apertam botões para se comunicarem com seus amigos biólogos. 

Mas, e a cinta liga?

Animais comem, dormem e copulam para se reproduzir. Gozam, sim. Viver é gozar, gozar é viver, apreendemos na “Biologia lacaniana” de Jacques Alain Miller.  Tal como o corpo do homem, o corpo do animal busca satisfação. A cadela é, portanto, comparável a um ser humano, mesmo porque, às vezes, ela só falta falar. Ou seria o contrário?  Será que é isso?

E a cinta liga?

Ocorre, que o ser humano “não é cachorro não”, como canta Falcão. O cachorro (ou a cadela) vê um bife sobre a mesa, olha para os lados e zaz .... engole o bife cru.  O ser humano tempera o bife, liga a churrasqueira, gela a cerveja, chama os amigos para saborear uma alcatra suculenta com  molho vinagrete e maionese de batata.

Mas, o que tem isso a ver com a cinta liga?

Sendo humanos, vivemos na civilização, numa organização social que nos protege, porque nascemos bebês prematuros, sem habilidades e nem “qualidades”, como diz Jorge Forbes. Só que a vida em civilização nos dá dor de cabeça, ou, um “mal-estar”, como prefere Sigmund Freud.  Está cheia de normas contra as quais exercemos nosso jus esperneandi desde criança. Somos separados da mãe, temos que conviver com os irmãos,  fazer cocô no peniquinho, aceitar nolens volens que a mamãe é a mulher do papai e, ainda por cima, somos obrigados a falar se quisermos algo e não simplesmente fazer o que nos vem na telha e que dá prazer fazer.

E a tal da cinta liga?

A civilização nos permite satisfazer nossas necessidades: comer, dormir, perpetuar a espécie....  Mas, não tem no supermercado da civilização exatamente aquilo que desejamos. Tem arroz , feijão, bife e salada, tem o que satisfaz as necessidades. No entanto, sendo humanos, queremos mais que isso.  “Bebida é água, comida é pasto, ... “ “Você tem fome e de quê,  você tem sede de quê?” E os  Titãs sabem que “A gente não quer só comida... “

E a cinta liga? Onde entra a cinta liga?

O marketing do supermercado da civilização diz que tem tudo que é preciso para a “qualidade de vida”. O supermercado da civilização tem, diz o marketing, os complementos da minha falta. Se tenho fome, tem comida saudável. Se sou desabrigada, tem uma casa. Se vou a uma festa, tem o banho de boutique. Se sou mulher, tem um homem para me fazer feliz, e, se estou doente, tem a minha espera o doutor, o raio X e uma parafernália de exames que podem mostrar exatamente onde dói.

E? cinta liga com raio X?

“Por que não somos felizes?”,  pergunta Freud. Perdemos algo nesse supermercado da civilização. O pior é que não sabemos que perdemos.  Esse “sabe-se lá o que” Freud chama das Ding. Jacques Lacan prefere chamar isso de “objeto a”, o “objeto causa do desejo”. Das Ding é algo que não entra na conta da civilização. Podemos dizer com Lacan e radicalizando Freud, que a civilização é uma construção em torno desse Ding, algo que não tem nome, mas que está presente sempre: “o Real”. 

A  cinta liga? Hein?

Procuramos a vida toda a chave perdida do paraíso da essência natural, do elo perdido entre o homem e a natureza. Assim, à procura do sabe-se-lá-o-que na civilização, entro como se fosse numa máquina de busca, na máquina do gozo:   “Achei!” , “ Não é isso...” , “ Achei!”,  “Não é isso”...   E tento de novo e de novo. Posso ou me dar mal nisso, detonar com a minha vida e a dos outros ... ou inventar rock´n roll.  And I trie, and I trie, and I trie ..... I can´t get no satisfaction.    Rollin´ Stones é gozo com estilo!

Bom. E a tal da cinta liga?

Tentando encontrar a satisfação derradeira, produzimos e destruímos coisas úteis. Usufruímos aquilo que nos satisfaz e um plus: um excesso, o supérfluo, o inútil. Ou será que tem alguma utilidade tomar chá numa xícara de porcelana chinesa? No entanto, é o inútil que dá ao ser humano uma satisfação que o animal não experimenta. Gozo é inútil. Quando tomamos chá na xícara de porcelana, gozamos com o olhar. Afinal, a xícara é bonita. Experimentamos com o tato a porcelana e ouvimos o tintilar da xícara, quando é tocada pela colher de prata. Quem preza tomar chá na xícara de porcelana não sabe de onde vem essa sensação de satisfação indescritível, o gozo.

E a cinta liga? Será que estamos chegando perto?

As palavras, diz Jacques Lacan, nos marcam. “Somos falados”, porque convivemos na civilização. Só que palavras são mais que marcas com as quais os outros estampam nosso corpo. Dá satisfação falar.  A criança goza quando fala na linguagem do lalala, na Lalangue, palavra inventada por Lacan. E nós adultos? Gozamos ouvindo e pronunciando palavras. Palavras poéticas emocionam. Chistes nos fazem rir. Música emociona. O contato com artes plásticas provoca sensações corporais. A arte provoca gozo. Mas palavras não dizem tudo e o silêncio incomoda. Muitas vezes, sentimos por isso dores inexplicáveis. Há até quem se mutila para ter essa sensação de satisfação no corpo e gozar dela. Por isso o gozo é satisfação paradoxal e não simples prazer. O gozo é experimentado por cada um de uma maneira singular. E por isso, como diz Jorge Forbes, cada um “goza como pode”. 

E o que tem a cinta liga?

Cada um goza como pode, e homens e mulheres gozam de maneira diferente, diz Lacan. Homens e mulheres têm posições diferentes na civilização. Homens vivem num mundo ordenado pela lógica masculina que cuida daquilo que é útil e necessário. Quem, dentre as do sexo feminino, nunca ouviu: “Como assim que você não tem roupa para ir à festa? Seu guarda-roupa está cheio!”  O universo masculino, o das utilidades, é organizado por um “ordenador das galáxias”, um que sabe tudo, que faz tudo, que é “o cara”. Se tem esse cara, deve haver na civilização a tal chave do paraíso, da completude, do mundo onde tudo se encaixa e onde há “a mulher” perfeita para deixar um homem feliz. Há uma fantasia masculina de encontrar essa mulher, de incorporar essa mulher, “comer” essa mulher. Outra vez, outra vez e outra vez. Mais ainda. Encore. “De novo”, homônimo de en corps , “no corpo”.  O gozo masculino para Lacan é perverso. Mas, quem diz quem nunca sonhou em transgredir?   

E a cinta liga?  Calma...  

E uma mulher? Como goza? Uma mulher também vive no universo das utilidades e necessidades.  Se ela não aceitar a lógica universal  “do sim e do não”, do “azul não é vermelho”, ela delira. Mas, há algo numa mulher que não se sujeita ao mundo da utilidade e da necessidade. O marido pode achar ruim, mas ela está mais próxima do que não serve para nada, e que, no entanto, dá o sabor à vida. Adora tomar chá numa xícara de porcelana, por exemplo. Mas, é difícil dizer o que quer uma mulher. Was will das Weib? “O que quer a mulher?” pergunta Freud. “O que quer uma mulher?” questiona Lacan. O gozo feminino não se encontra na civilização, mesmo porque essa civilização, ao menos por hora, é marcada pela utilidade da lógica masculina. Mas, há gozo feminino que se expressa, por exemplo, no transe místico, no êxtase do parto, na criação e na invenção de moda. Mostra-se no je ne sais pas quoi  do brilho nos olhos de uma mulher, como canta Marlene Dietrich no filme “O anjo azul” exibindo belas pernas ornadas com cintas ligas. 

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

Data de publicação: 01/09/2017