Bruta flor do querer

Letícia Genesini

Bruta flor do quererNão somos amados por aquilo que somos, mas pela falta que reconhecemos em nós mesmos, e que inconveniente colocamos no outro

No último dia 18 o site do Estadão publicou o artigo de sua blogueira Ruth Manus intitulado “A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que o homem NÃO quer” (sic). Imediatamente seguido de uma longa série de elogios e críticas, o polêmico post aponta uma suposta dissonância de uma geração em que as mulheres foram criadas “para ganhar o mundo”, enquanto os homens dessa mesma geração ainda querem Amélias.

Ela abre o artigo enumerando uma série de atributos da mulher moderna que, como ela segue dizendo, seria exatamente aquilo que um homem não quer.  “Às vezes me flagro imaginando um homem hipotético que descreva assim a mulher dos seus sonhos: ‘Ela tem que trabalhar e estudar muito, ter uma caixa de e-mails sempre lotada. Os pés devem ter calos e bolhas porque ela anda muito com sapatos de salto, pra lá e pra cá. Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende com o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer uma viagem sozinha pelo leste europeu. Precisa dirigir bem e entender de imposto de renda. Cozinhar? Não precisa! Tem um certo charme em errar até no arroz. Não precisa ser sarada, porque não dá tempo de fazer tudo o que ela faz e malhar. Mas acima de tudo: ela tem que ser segura de si e não querer depender de mim, nem de ninguém.’ Pois é. Ainda não ouvi esse discurso de nenhum homem. Nem mesmo parte dele. Vai ver que é por isso que estou solteira aqui, na luta.”

Muitos artigos e alguns deboches vieram em resposta a este desabafo velado de crítica, e entre defesas e acusações calorosas, a repercussão foi mais dissonante do que a questão em si. Como bem haveria de ser, pois para além da crítica social, está aí um problema muito mais insolúvel, o amor.

A problemática maior não está na dissonância em si, mas em acreditar que o encontro do amor se dá por acharmos no mundo exatamente aquilo que procuramos. Ou mesmo que o amor é uma resposta que conquistamos por merecimento diante de todas nossas infinitas qualidades que finalmente foram reconhecidas por alguém. Mas amor não é algo que se mereça – pode-se enumerar a mais extensa bula de qualidades e dotes, e a dissonância, sinto lhe dizer, vai persistir.

Isto porque, como dizia Lacan, “Amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. Falando cinco línguas ou cozinhando uma jantar de cinco pratos, o encontro não é feito com o que temos de mão cheia – este já nos basta – mas sim o que estamos em falta. Não somos amados por aquilo que somos, mas pela falta que reconhecemos em nós mesmos, e que inconveniente colocamos no outro.

Nem Frida Khalo, nem Amélia. Ninguém é a mulher que o homem quer. Não há como encontrar “a mais justa adequação”, pois como diz Caetano, “a vida é real e de viés”. O ser amado não é a realização da nossa fantasia, é nossa pedra no sapato, o incômodo que nos tira do eixo e nos desestabiliza, nos impulsionando para frente – ainda bem. 

Letícia Genesini é escritora, designer e corredora aficcionada. Publicou os livros de poesia "umponto" e "entre" pela editora 7letras. Siga-a no Instagram: @fit_let

Data de publicação: 03/07/2014