Blade Runner desafina o coro dos otimistas

Silvio Genesini

Blade Runner 2049 estreou no Brasil e no mundo na semana passada. O filme original foi feito em 1981 e se passa em 2019, praticamente no mesmo tempo que vivemos atualmente. Como o antigo, o novo mantém a sua visão pessimista do futuro da humanidade. Ao contrário do antigo, que parecia uma ficção científica impossível de acontecer, o novo é mais verossímil na projeção do futuro tecnológico.

Aviso aos navegantes: o texto a seguir praticamente não contém spoilers. Quem ainda não viu o filme pode continuar a leitura tranquilamente que nada da trama, bem construída e surpreendente, é contada.

Pode ser que nunca vá existir um replicante que nasça adulto feito à imagem e semelhança dos humanos que seja muito difícil de distinguir. Mas, com o avanço da inteligência artificial, da robótica, da genética e da biotecnologia, a existência de alguma criatura similar – menos perfeita possivelmente – já é possível vislumbrar no intervalo de tempo de 30 anos que temos para chegar à 2049.

Vivemos tempos em que os avanços tecnológicos são vistos como a solução para todos os males do universo. Se há alguma escassez, a tecnologia vai trazer abundância. Se há pobreza e desigualdade, a inovação vai criar um mundo mais justo. Se há guerras e terrorismo, a prosperidade vai nos unir e pacificar. Blade Runner é o oposto de tudo isso.

O filme original mostrava uma Los Angeles lúgubre, escura, com chuva ácida e habitada por gente estranha. Nada disso aconteceu. A nova versão mostra uma Los Angeles futurista, ainda mais macabra, assustadora e circundada por muralhas contra as marés que subiram devido ao aquecimento global. San Diego virou um depósito de lixo e Las Vegas foi abandonada e está coberta por uma nuvem radioativa. O roteiro não deixa nenhuma dúvida de que a batalha pelo clima e pela salvação da terra foi perdida. Há várias referências de que uma parte significativa da humanidade – a mais privilegiada, claro – abandonou o planeta.

O original trazia tecnologias que pareciam distantes 35 anos atrás. Hoje são quase corriqueiras, como a comunicação por voz com computadores e máquinas. Os roteiristas, no entanto, não foram capazes de prever a mobilidade. Não há nada sequer parecido com um smartphone. Há uma conversa por vídeo, que é feita de um aparelho fixo na rua que é quase um orelhão futurista. Também as telas eram todas de tubo. Nenhum sinal das telas planas de hoje.

A mobilidade aparece transformada de maneira radical em 2049. O agente K (Ryan Gosling) tem uma namorada holográfica que bem pode ser considerada uma evolução das assistentes virtuais (Siri, Alexa, Cortana, Google Assistant) que conhecemos atualmente. É uma versão humanizada do sistema operacional vivido por Scarlett Johansson no filme Ela. A falta de corpo da personagem, que também é um problema em Ela, é resolvida em uma das cenas mais belas e criativas do filme, para protesto de movimentos feministas que a consideraram sexista.

Já no original os carros voavam. Em 2049, além de voarem, são autônomos (agente K tira uma soneca voltando para casa) e carregam drones que ajudam na vigilância e reconhecimento do terreno. Os nossos carros ainda não voam, mas este tempo não está longe.

Entre 2019 e 2049 houve um apagão (dez dias de escuridão) e todas as bases de dados se perderam. Restaram apenas fragmentos. Pode ser uma premonição para a nossa dependência, cada vez maior, de temos todos os nossos ativos digitais na nuvem.

Na distópica Los Angeles continuam, como no primeiro filme, os anúncios com logos de corporações como Sony, Atari, Coca-Cola e Pan-Am. Possível mensagem subliminar de que marcas e empresas mortas como Atari e Pan-Am podem voltar ou que nenhuma delas vai sobreviver? Os painéis luminosos, estilo Times Square, adquirem vida e viram holografias gigantes que invadem ruas, pontes e viadutos.

O filme também apresenta uma amostra do que podem ser as profissões do futuro. Em um estado autoritário e controlador ser um agente de segurança é uma profissão relevante. É o caso de K, que é caçador (aposenta-os, no eufemismo do filme) de androides. Uma das novidades está nas novas ocupações que criam memórias de infância para os replicantes e que produzem testes psicológicos para avaliar a condição dos agentes em situações pós-traumáticas.

As previsões catastrofistas das obras de ficção nunca se confirmaram. 1984 de George Orwell foi publicado em 1949. Previa um mundo dominado pelo totalitarismo e controlado por um Big Brother que tinha o dom de ver e saber de tudo. 1984 chegou e logo depois o muro de Berlim caia em uma das melhores décadas do século passado. Hoje Big Brother é apenas um reality show decadente.

O próprio Blade Runner original projetava um 2019 desolador e decadente. A menos que Trump e Kim Jon-un nos metam em uma terceira guerra mundial nada disso vai acontecer. Pelo contrário, apesar de guerras, terrorismo, desigualdades crescentes o mundo nunca foi tão bom. Vivemos o melhor dos tempos, o que não quer dizer que não tenhamos problemas graves não resolvidos e incertezas grandes com relação ao futuro.

Blade Runner 2049 é um belo filme, como o anterior. Quem esperava que ele fosse um campeão de bilheteria não entende o espírito cult e alternativo do filme. O seu pessimismo é uma ruptura arejada e bem-vinda com unanimidade burra – como todas – de que a tecnologia só tem um lado e que ele é sempre bom.

A sua escuridão soturna é uma reflexão sobre os limites éticos e técnicos das possibilidades de criação, à nossa imagem e semelhança, de um ser humano perfeito. Por mais que misturemos inteligências artificiais com prodígios genéticos, e tentemos criar um ser “mais humano que os humanos”, sempre existirá um defeito, uma falha, uma fenda, uma rachadura. É por aí que a luz entrará novamente.

Texto publicado originalmente no site e aplicativo da revista Exame.

Silvio Genesini é sócio-diretor da ToF (Traduzindo o Futuro), conselheiro de grandes empresas e investidor em startups e empresas inovadoras.

 

Data de publicação: 26/10/2017