A psicanálise e os discursos religiosos fundamentalistas

Dr. Clovis Pinto de Castro

O novo cenário político brasileiro, no qual fé e política andam de mãos dadas, é um exemplo de algo antecipado por Jacques Lacan em 1974: “[a religião] não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas também. É inclusive impossível imaginar quão poderosa é a religião”[1]. Lacan percebe a religião como algo inerente ao ser humano; é da ordem do indestrutível; é estrutural, aparece como repetição – insiste e resiste. Diferente de Sigmund Freud, que acreditava no domínio do saber científico positivista sobre a religião, Lacan afirma que a religião dará “um sentido a todas as reviravoltas introduzidas pela ciência. E, no que se refere ao sentido, eles [os líderes religiosos] conhecem um bocado. São capazes de dar um sentido a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por exemplo. São formados nisso”[2]. Lacan reconhece a legitimidade do saber religioso. É um saber entre tantos outros: “enquanto analistas, pensamos que não há saber algum que não se erga sobre um fundo de ignorância. É isso que nos permite admitir como tais muitos outros saberes além do saber cientificamente fundado”[3].

A psicanálise e a religião nascem da mesma demanda: uma resposta à angústia, mais precisamente, a angústia da morte – angústia que marca a condição humana. Para lidar com essa angústia, a religião e a psicanálise percorrem caminhos diferentes. Os discursos religiosos fundamentalistas são da ordem da completude e da moral. Nada pode escapar ao sentido. Buscam apaziguar os seres angustiados. Sua missão é “curar os homens (...) para não perceberem o que não funciona”[4]. A psicanálise tem outro viés.  Não trabalha com discursos ordenadores da realidade. Não há generalizações possíveis. É da ordem da incompletude e da ética. Sabe que há demandas existenciais que não cabem nas palavras. Como afirma Lacan, a psicanálise “se ocupa muito especialmente do que não funciona (...) – o Real”[5].  

O conceito de Real em Lacan tem raízes em Sören Kierkegaard, teólogo cristão e filósofo dinamarquês, que percebeu algo na existência que escapa ao pensamento lógico, racional e que não permite uma síntese (diferente da tríade tese-antítese-síntese de Hegel). Retoma o mito de Adão e Eva. Os vê como seres angustiados, que não tinham consciência da existência do bem e do mal. Eles se angustiavam diante da ignorância, da inocência. Uma angústia diante do vazio, do nada, das escolhas. Não era angústia por não poder fazer nada. Era a angústia por não saber o que fazer. Angústia diante do que não se nomina (nomearam tudo), menos o inominável, o resto, o que sobra, a hiância[6].

No Brasil, os discursos religiosos fundamentalistas têm conquistado mais visibilidade. São frutos de teologias em que há uma negação da angústia. Tudo pode ser nomeado e ordenado pelas palavras. Busca-se o tempo todo tamponar o Real. Rompem com os discursos religiosos cientificistas e intelectualizados. A “verdade” está em uma única fonte: nas Escrituras Sagradas.   Afirmam o “direito” dos fiéis ao paraíso aqui e agora. Sem angústia. Não precisam mais “sofrer”. O sacrifício de Cristo “desculpabilizou”  todos. O castigo dado a Adão e Eva não precisa mais ser aplicado. Perdeu o prazo de validade. É uma experiência religiosa mediada por um “contrato”, que transforma o fiel em “sócio” de Deus. Ao pagar o tributo, ele exige e cobra a sua cota de bênçãos diárias.  

Trata-se de uma nova dinâmica libidinal para lidar com Deus e com a realidade. Distancia-se de uma religiosidade marcada pelas proibições. Já não se enquadra numa neurose obsessiva de massa, marcada pela culpa, típica das religiões tradicionais. Está mais próxima de uma histeria. Nessa nova economia libidinal, o fiel cobra de Deus o que lhe foi tirado: sua perda (o paraíso). Assume uma posição reivindicatória, alguém me tomou algo. Insatisfeito, busca o que lhe é “devido”. Uma insatisfação estrutural, sempre está faltando alguma coisa. Vive-se no ciclo “satisfação-insatisfação”.

O pai (Deus) dessa relação histérica, causador da neurose e do sofrimento inicial, é substituído pelo Diabo. Este se torna o maior (e único) responsável por todas as desgraças que acometem os fiéis. Tanto a salvação (o bem) como a perdição (o mal) são causadas por agentes externos. Isso leva os fiéis a cobrarem de quem está lhe devendo, Deus, e a “guerrear” com quem lhe tirou o paraíso, o Diabo, o inimigo a ser eliminado[7] . Qualquer sintoma, novo ou velho, tem uma única fonte: o Diabo, entidade espiritual que também se manifesta em pessoas, instituições, obras de arte, livros e outras produções artísticas. Há uma simplificação da realidade cotidiana. É um retorno à magia pré-moderna. Tudo se resolve por meio de palavras de ordem. A fé fica restrita à dimensão emocional, e o importante é “sentir” Deus. Palavras como doação e sacrifício não fazem parte do repertório dessa experiência religiosa hedonista e narcísica.

Em um caminho oposto, a psicanálise lacaniana não tem receitas, fórmulas, mágicas para ‘desangustiar’ o ser humano. A angústia é um corte impossível de ser suturado. O desafio é saber conviver com ela e chegar à singularidade da verdade mentirosa. Como afirma Kierkegaard, cada ser humano “deve costurar a sua própria camisa”[8], ou, nas palavras de Forbes, “fora do sofrimento prêt-à-porter, cada um inventa a sua singularidade”[9]. Isso serve para os que creem e para os que não creem.

 

Dr. Clovis Pinto de Castro é membro do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA.



[1] LACAN, Jacques. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Zahar, [1974] 2005, p. 65.  

[2] LACAN, Jacques. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Zahar, [1974] 2005, p. 65.  

[3]LACAN, Jacques. A ética da psicanálise (1959-1960), Seminário, livro 7. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 206.  

[4] LACAN, Jacques. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Zahar, [1974] 2005, p. 72.

[5] LACAN, Jacques. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Zahar, [1974] 2005, p. 72.  

[6] CASTILHO, Pedro. Sobre a transmissão da psicanálise: o legado de Kierkegaard. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 42, n. 2, jun. 2010.

[7] MELLO NETO, Gustavo Adolfo Ramos ; SILVA JUNIOR, Maurício Cardoso da. A sedução divina no neopentecostalismo: um estudo psicanalítico. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 10, n. 3, set.  2010.

[8] KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor. São Paulo: Hemus, 2008, p. 81.

[9] FORBES, Jorge (Ed.); RIOLFI, Claudia (Org.). Psicanálise, a clínica do Real. São Paulo: Manole, 2014, p.16.

Data de publicação: 13/02/2019