106 anos

Letícia Genesini

O século XXI, ainda mais rápido, não possui só dois lados — o antes e o depois —, mas sim inúmeras direções inusitadas

Neste último dia 02, morreu, aos 106 anos o cineasta português Manoel de Oliveira. Entre poucos e tímidos posts no facebook, um amigo sabiamente comentou: "morreu o maior museu do cinema", se referindo ao fato que a linha da vida do diretor, longa como foi, se confunde com a própria história do cinema. 

Tendo nascido apenas dois anos após o primeiro longa-metragem da história, e com apenas 7 anos quando D.W. Griffith usou pela primeira vez a montagem paralela, e mostrou como o jogo de luz e som pode dar o tom de uma cena, Manoel viveu todas as revoluções da linguagem do cinema. Sendo provavelmente o único cineasta da atualidade que também produziu filmes mudos, Manoel atravessou o século XX acompanhando revoluções estéticas sem perder seu laço com a sempre nova contemporaneidade. Isto é crédito não só da longevidade do homem, como a do autor (embora seja quase impossível fazer essa separação), que era visto como o mais velho realizador do mundo ainda em atividade: 106 anos de vida, 86 de cinema (profissional).

 Este contraste de um homem que pode viver e atuar em mundos tão distintos é também uma das heranças que temos do século XX, um século rápido o suficiente para caber em uma (longa) vida, mas grande o bastante para atravessar gerações. Um século que viu Picasso passar da fase azul ao cubismo, Mondrian reformular a figura em seus elementos mais sintéticos, e Bob Fosse levar o jazz de Ann Miller à Liza Minnelli. 

O século XXI, ainda mais rápido, não possui só dois lados — o antes e o depois —, mas sim inúmeras direções inusitadas. Atordoante? Sim. Mas também encantador, pois se Manoel de Oliveira teve uma visão privilegiada da história, podendo vislumbrar os dois lados de uma revolução, nós vivemos momentos de intermináveis transições. Não precisamos descobrir a estética final, a teoria total, o fim da história, podemos olhar para os dois (infinitos) lados e construir em cima, cada vez mais, inextinguivelmente. Por quanto houver vida, poderá haver obra. Que nossa vida possa ser vasta como a dele. 

Letícia Genesini é escritora, designer e corredora aficcionada. Publicou os livros de poesia "umponto" e "entre" pela editora 7letras e “Espaços Interativos" pela nVersos.

Data de publicação: 09/04/2015

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